terça-feira, 22 de fevereiro de 2011

Vida

Ele.

Às onze,geralmente eu chegava e ficava estacionado frente o portão cinza e de formato antigo da Florêncio de Melo,número sete.Era alegria quando de lá de dentro como num passe de magia,surgia,com ar alegre aquela linda moça da pele lisa,voz macia,corpo leve como em comercial de sabão em pó ou margarina.Aparecia e ora vinha com mil perguntas que eu respondia calmamente enquanto lhe contava o meu dia,ora calada,me dava um beijo e sorria,que agonia,eu sentia até um frio na barriga.Entrando em casa,ora me puxava ao sofá e de beijos me enchia,festa fazia,ora me abandonava pela sala e pra cozinha corria e falava,falava,falava...enquanto a comida,até então desconhecida por mim e por ela esquecida,queimava,queimava,queimava..
E até que era bom o queimado,trazia aquele amargo esperado que antecedia a discussão inevitável sobre a vida de casado,bla,bla,bla,blé,blé,blé,deve ser "coisa de mulé",essa coisa de implicar com qualquer coisa.Fala e fala,depois se cala e me encara,e eu ficava lá,com a cara,a coragem e a comida e enchia a boca,pra não lhe deixar saída ou pergunta a fazer,e sem nada a fazer,fazia o que todo ser-humano faz,ia assistir tevê.E mesmo assim continuava a me encarar subitamente enquanto eu lhe negava o olhar sem muito sucesso,não resistia,e de relance ela ria,eu estava ali olhando,pensando,olhando,pensando...como aquela linda criatura veio a ser minha,e me ver com satisfação,me precisar com necessidade,sentir felicidade em estar junto por mais um verão,e no sofá assistindo o Jô,me beijou e implorou pela cafeteira nova que mais tarde ganhou - "cafeteira,ora veja" - como pode se dar satisfeita e feliz apenas por uma cafeteira?
O filme começa e ela já boceja,eu,confortavelmente desconfortável,deixo servir de apoio para o seu corpo no sofá duro e morno - "café? precisamos é de um sofá novo" - é inevitável não olhar para o sono recém-chegado que a domina,e lhe inclina a cabeça para trás como um jovem "nenê" lutando contra o próprio sono e impotente até para controlar o tronco.Então eu a agarrava e a levava,e como o mesmo nenê ela sorria de olhos fechados,sorriso,característica mania,só aí a entendia.

Ela.


Colocava a lasanha no forno por volta das dez,arrumava a cozinha,o quarto,lavava os pés,botava pra fora o lixo,trocava o sapato,sentava e descansava,tava tudo arrumado,sabia e aguardava porquê,lá pelas onze,enfim ele chegava e estacionava frente ao portão,como visita ou um desconhecido,soltava um sorriso tímido e medroso,eu lhe abria o portão,ele retirava a mão do bolso sempre com alguma surpresa,um bombom que seja,dava-lhe um abraço,ele me beija.Lembrava nosso tempo de boemia (só terminávamos a noite quando o bar era "casa vazia") .Aí eu entrava em casa e se estivesse sem nada a fazer,com ele fazia,no banheiro,quarto,sala ou cozinha,esquecia até da comida ou da vizinha que,"ocasionalmente",tudo ouvia.Depois sentávamos à mesa,ora "tudo beleza",ora uma dureza,a discussão começava e como em toda briga de casado,eu falava e ele ficava calado,sentado,como se nada estivesse acontecendo,comendo,comendo e comendo,parecendo conhecer bem sua esposa,sabia que mulher implicava com qualquer coisa.Sentava no sofá e era eu o encarando e ele desviando o olhar,totalmente sem sucesso,de vez em quando,confesso,me assustava quando ele fixava o olhar em mim - "o que pensaria o moço da roupa de cheiro carmim?" - Não queria realmente saber,o rapaz estava ali,eu sabia,para me proteger,me gostar,acariciar e socorrer pra todo tipo de necessidade,era gostoso fazer de todo dia o nosso céu e inferno,melhor ainda a alegria de estar junto por mais um inverno.Acabava de jantar e deitava comigo no sofá,fez cara feia quando pedi a cafeteira,sua posição era desconfortável mas se ajeitava de uma maneira bem agradável (para mim),era simplesmente amável sua preocupação,então envolta em suas mãos,grandes mãos,eu me sentia a pessoa mais segura do mundo naquele momento,sim,era um absurdo,porém era uma grande fortaleza aquele sentimento,esquecíamos o que estavámos vendo,fosse o Jô,fosse o jogo - "precisamos de um sofá novo" - ele diz,eu concordo e acordo do cochilo que tirava,ele brinca - "tá de baba" - eu cochilo,mau consigo levantar os cílios,enfim meu pescoço deixa cair a cabeça sobre seu braço e,ao pé d'ouvido,me sugere um amasso,um completo safado,eu rio e tento afastá-lo até cair em sono profundo,ele fica mudo,aí então sai do sofá e vai não sei para onde,como essa gente que se esconde,e como foi,volta.De repente,desce uma mão quente,que me suspende como a mão da mãe na praça que embala seu belo "nenê" com calma e graça,eu rio,ele vai pro quarto me levar,só aí é que entendo todo o seu olhar.

Allan Bonfim.

6 comentários:

  1. a rotina simples, feliz, bonita.. que se torna necessária e que não cansa nunca!
    e quando não existe mais.. faz falta, muita falta! e a gente fica ali do outro lado esperando que ela volte, nem melhor, nem pior, mas como sempre foi.

    teu post falou forte comigo... por vários motivos..

    tudo muito bonito por aqui, Allan, como de costume.
    Beijo grande.

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  2. seu post tá lindo, e descreve muito bem a questão da rotina, agora só pra descordar um pouco, em relação ao comentário de Marina...
    Eu acho que a rotina CANSA, e que não faz falta, veja bem, PRA MIM!
    ;)

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  3. Rotinas podem ser ruins, mas quando não existem fazem falta.
    Gostei muito do texto.

    bjus =*

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  4. Ow,brigada de verdade.Eu nunca comento mas eu sempre leio,viu?! te curto :) beijos beijos

    p.s.:Meu texto,seu texto.Pode usar :)

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  5. own que lindo Allan! Quem escreve bem não sou eu, é você. Prosa poética das boas hein? Lindo, lindo mesmo, parabéns!
    Obg pela visita (:
    bom carnaval!
    Beijos

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  6. Incrível como a descrição feminina é mais detalhada. Eu acho mais fácil me colocar no lugar do outro. É como eu gostaria que as coisas fossem.
    E bela narrativa, gostei bastante.

    E concordo com a Jhuliana. Rotina cansa, bastante. Desgasta. É melhor ter sempre uma coisa nova pra acontecer.

    Um beijo.

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